FOLHAS AO VENTO
Quarta viagem
Uma seqüência de poemas meus
Longe
Desceu a noite como um rio do Norte
um lento rio gelado da Galícia.
Um rio de mansas águas, rio de almas
de vidas de aldeia e o tear de seu tecido
como águas de viagens da vida rio abaixo
onde as cinzas dos mortos salvam os céus.
Rio distante e de águas azuladas
casa de peixes e de deuses, rio de sedas
rio de falas em, sânscrito, rio da Índia.
Govinda viaja moço nessas águas
E voa e voa sobre o corpo azul do rio.
Mais o milagre é Gandhi. Venham, vejam:
Ele mergulha as mãos e tira o sal
Como um dia no mar, um dia antigo
Quando um gesto criou um povo livre.
E o sol viaja a Oeste, barqueiro de Sidarta
e a noite como a virgem vem coberta
de sete véus de sete cores vivas
e estende a cama no leito azul do rio.
Alguém diz três nomes como em prece
e as estrelas da Índia clareiam de novo
o corpo de águas e mortos de saudade.
Monge de abril, o rio abraça a noite
e alguém atiça o fogo e acende a lua.
9 de fevereiro (quando?) (onde?
aos que vierem
Quando estes pequenos sinais
(marcas a lápis na margem dos livros)
forem algum dia achados ao acaso
eu terei ido embora daqui.
Virá alguém à biblioteca que foi minha
e abrirá distraído um livro entre tantos.
Ao folhear as páginas, sem pressa,
em alguma folha setenta e quatro
encontrará uma pálida, uma quase apagada
escritura que eu rabisquei um dia.
Talvez nem a note, e será bom.
Ou, então, curioso, fugirá por um instante
do texto impresso em letras de um negro poder
e virá à margem ver os meus rabiscos.
Não saberá decifrar a minha letra ilegível
E nem por isto ficará menos sábio.
E fechará o livro e ao devolvê-lo à estante
Talvez pergunte: quem foi? quando?
E pode ser que a alma de meu espírito então responda:
Fui eu, mas esqueça. Eu esqueci.
21 de março
(onde e quando?)
o ar de agora
Sairei hoje cedo pelo campo
poeta do verde e da chuva
respirando o ar que a manhã venta.
Responde o amigo – o do consumo:
companheiro de vida, não se iluda
o ar que você respira hoje em dia
está cheio de estrôncio noventa.
1975
(achado num caderno de viagem)
o milagre do fogo
parecem coisa tão rara
essas pedras, no entanto gastas,
de que o povo da roça
arranca fogo e fumaça,
o fogo e sua coivara
quando ele acende entre os dedos
um só cigarro de palha,
quando entre as mãos incendeia
seu quinhão de hora vaga.
1975
(achado em um caderno de viagem)
caminhar
Sob os sapatos pretos calcava
pedaços do chão de pedra.
Andava, e de andar ordenava
O mundo por onde ia e ia.
Caminhava em linha reta
E no entanto ia sinuoso
E perdido entre o que pensava:
perdido entre as suas palavras.
E caminhando descobriu enfim
que o chão por onde ia o salvava
de perder-se nas trilhas de si mesmo
e no emaranhado de suas teorias.
Com os pés na terra se livrava
do embaraço de seus outros gestos.
Filosofava: “com os meus passos
desenho sobre o chão o meu caminho
e se caminho sei: eu ando e existo
é essa a certeza: viver e caminhar”.
1975, na Cidade de Goiás
(achado em um outro caderno de viagem)
o começo do dia
primícias de mar
pobres primícias
de uma pobre manhã
de vento e sem o sol.
Uma manhã aqui
aberta entanto
na janela do dia
para o pescador
de volta ao rancho
na manhã de maio
com as mãos vazias
e o rosto amargo
e os seus trastes
de mago e de artesão
na espera de amanha
de um outro dia
onde haja sol e peixe
e a alegria.
na última folha de uma agenda de 1975
com a sombra
Como a sombra eras, como a sombra
e da noite onde as sombras moram, vinhas
pois é noite ainda e a lua ausente brilha
brilha, amiga, ainda na morada da memória.
E é noite e há apenas noite agora, para que
brilhe, vinda de ti, esta luz imaginada.
encontrada na última folha de um livro, em duas versões e
sem maiores indicações
a morte vaidosa
Diz assim o jornal
do vizinho de banco de trem:
“silicone já matou mais de cinco só este ano”.
Oro por estes corpos
e imagino homens-fêmeas sedentos da fome da beleza.
Talvez neles, mais do que em nós mesmos
a mão da vida esboce os seus desenhos.
encontrado na última folha de o caminho dos ventos
do querido amigo Régis de Moraes. Junto de um poema dele,
muito melhor do que este.
luz
alguém risca um fósforo
e acende a vela
e o bem da noite se acende
neste gesto.
Alguém fez aqui este milagre
e um homem triste bebe
e é triste, encostado
no vidro da janela.
na última página de poesias,de Eugenio Montale
a vida
tudo valeu, Pablo
tudo sempre vale:
uma vida, a tua
devotada ao amor
e à palavra.
Valeu, amigo
foi como um vôo de ave.
E ela partiu, ela voou
de tua ilha a uma outra
onde não sabes
que mar existe, que povo
que poemas.
Resta teu mar e o amor
o povo e a espera
e uma palavra que diga:
“é tempo ainda”.
na primeira página do últimos poemas (o mar e os sinos)
de Pablo Neruda
ainda, agora
não obstante tudo
alguma coisa
ainda canta em nós.
Se é Maria ou o mar
a vida ou o vento
é bom não saber.
É bom não perguntar
e ouvir apenas
ainda, agora
enquanto há canto,
o canto e o seu cantar.
na última página do mesmo livro,
e no final este pedaço meu:
não faz leitura
o chão do sentimento.
um lugar
Era uma esquina de três ruas em Copacabana.
Havia um poste na curva entre as três ruas
um poste como todos os outros com ferros e fios
mas ele tinha uma base de cimento ao redor
e assim, era o único poste que era também um banco
ali, entre as esquinas de três ruas em Copacabana.
Havia uma árvore; havia mais e quantas eram?
Mas uma, mais próxima do poste e da esquina
derramava um gesto de sombra sobre o banco.
Alguns pardais estavam sempre ali
e se eram os mesmos, só eles saberiam.
E se aninhavam na árvore e justos esperavam
o pôr-do-sol para cantarem juntos.
E eram poucos os carros e até poucos os passantes,
pois aquela era uma esquina de ruas esquecidas
mesmo sendo três ruas de Copacabana.
E assim, o poste, o banco, a árvore e os pardais
reinavam ali e hoje reinam na lembrança.
na última folha do antologia poética, de Elizabeth Bishop
da “Ediciones el Tucan de Virginia”.
Nós, ele
Não fomos os primeiros e nem os últimos
Outros vieram aqui, eis suas marcas.
A morte ronda ainda este lugar
E o nome do morto esquecido não se esquece.
Ele não é um mártir,
É um homem como apenas
E sobre ele soprem as velas, soprem as velas.
(na última folha de um livro de Nelly Sachs)
Longe, aqui
Longe. Longe?
Ô que é longe? Onde é o longe?
Aqui é longe e um sol de outono
Na fumaça do canavial incendiado
Vem olhar o seu rosto noutro rosto.
E no lugar onde eles se encontram:
O fogo do céu e o da terra
Ali eles se dizem: aqui é onde.
(numa página do livro Prosas de Malarmé)
Numa estação de trem
uma blusa branca deixada na estação de Bolonha
pomba fugidia de paz, caída de alguma bolsa.
veste de um corpo, vestígio de um gesto
ou alguma noite de amor interrompida?
Na folha de rosto de Juan Jamon Jimenez – poesie d’amore
Trens
Um trem corta a Espanha
E outro, e outro ainda.
E há a névoa e há a brisa
Da noite e do norte.
E era a hora de não chegar mais
E um trem corta a Espanha
E outro mais
E outro mais ainda.
Na contra capa interior do mesmo livro, com a data: 11 de fevereiro de 1992
Lenda
Que essa moça, virgem
E de pele entre o ocre e o açafrão
Não coloque as duas mãos nos seios.
Isto ela faz a cada manhã quando o dia nasce
E é cedo. Não é cedo ainda.
Que à tarde ela não escorra a água dos cabelos
Sem antes ouvir dos velhos que já é tempo.
Quando ela faz assim o sol do dia anoitece
E a noite vem mais cedo, e é cedo ainda.
Que a dança da mãe lhe seja agora proibida
E que ela não pinte de azul a pele escura
E nem na cabeça coloque penas brancas.
Tudo isso apressa a primavera e é cedo agora.
O Sete-Estrelo e o caçador ainda não se avistam
Ao pôr-do-sol e nem é a lua cheia de outubro.
Por isso, que ela não adoce o pão com mel,
Sinal dado às almas que retornem
A esses rios de águas frias. A essas terras.
vôo Bogotá-México, 7 de outubro de 1999, em uma folha solta dentro de
El Bosque Transparente, de Angel Crespo