terça-feira, 27 de setembro de 2011

TRÊS OUTROS POEMAS COM A PALAVRA VENTO

 
TRÊS OUTROS POEMAS COM A PALAVRA: VENTO


Como o vento, as palavras vêm


Escrevo. E ouço me dizerem as palavras
que nada do que está escrito aqui é meu.
As palavras me tomam nessa noite.
Como as sementes de um pé de amoras
elas me chegam de longe com o vento.
As palavras que eu digo, que eu escrevo,
não são minhas letras e palavras
e nem as frases e idéias que penso serem minhas.
Elas me chegam, brotam na terra de que sou,
como a planta semeada se desvela.
Nada do que está escrito aqui é meu.
Nada do que escrevi a vida inteira foi meu.
As palavras que dizemos e as que ouvimos
não são  nossas em momento algum
e se ilude aquele que escreve e pensa: “isto é meu!”.
Elas chegam com o vento, como o vento.
Vêm de longe, de um onde não sabemos,
e por outros rostos foram ditas e em outras vozes
sob a sombra de outras árvores e outros frutos.
E outros ouvidos as ouviram em outras línguas.
Um vento de passagem as recolheu, um vento
como o que agora venta aqui. Vem e escuta!
Em outra noite como agora, em um lugar distante
um outro vento as recolheu nos braços, safra de letras.
e as palavras que pensamos nossas, vieram nele.
Terão cruzado o calor de algum deserto.
e povos beduínos as terão ouvido antes de nós
as palavras que cantaram e não são nossas.
Terão atravessado um mar, um oceano,
guiadas talvez por uma estrela
que de longe traduziu letras, palavras
e as entoou antes de nós, bem antes.
E com o vento chegaram aqui as palavras
e por um instante, durante um breve tempo
do passar do sopro de um vento errante
elas me habitam como quem, cansado
encontra uma tenda ou a sombra de outra árvore.
Um momento efêmero, porque logo  tomam alento
e em um outro vento viajam... vão embora
e pousam em um lugar longe, de outras línguas.
E passaram por nós, e as ouvimos e falamos,
e algumas vezes as retemos num papel
imaginando sair de nós o que apenas nos visita.
E aqui ficamos enquanto elas nos deixam.
E o que chamamos, sem saber,  “silêncio”
é apenas o seu ir embora e nos deixar
até que outro vento passe e em nós ressoe
um poema,um pensar, uma canção.
Palavras que repousam em nós o seu minuto.
Em nós que  sonhamos que ouvimos
Vindo dos rios de nosso corpo o que flui no tempo,
em sabermos que aquele que  escreve
é  apenas um alguém um pouco mais atento ao vento.
Ele escreve as palavras que o possuem,
mas quem? Quem decifra a voz do vento?



zen by mordachai




Era uma tarde, o vento




Era uma tarde e era quase a noite,
no horizonte houve um traço de Van Gogh:
um tom de laranja e um outro cor de barro.
E eu sonhava ir indo por ali, sozinho.
Como quem deixa as uvas e colhe o vento.
A noite veio vindo como quem a pé
e acendeu entre a Lua e o Cruzeiro
um carreiro de velas.  E pareceu até
que o breu da noite clareia mais que o dia
por um instante que fosse, um momento.
E sobre o manto do mar Órion molha as mãos
e quem neste vôo vela a noite como eu,
desperto e aceso, se espanta e se pergunta:
para onde foi o que da tarde havia?
E quem chegou e quando? Vindo de onde?
Trazido de qual nuvem? De qual vento?
De que lugar que longe há, e eu não sabia?


Van Gogh: outono


O berrante, o vento

Ouves este som? Pensas que é o vento?
Ouve de novo! Escuta e vê. Não venta.
E na volta da estrada é um som dolente
quem trás até aqui três notas de um berrante.
Alguém que não o vento o sopra. Ouves? Quem?
É um boiadeiro quem canta e, como o vento
fala a ele e aos bois, e a nós e a deus,
e a todos embala como se fosse um berço
o sertão que entanto é pedra e fogo aceso.

Berrante, o artefato de sopro mais humilde
e o som mais igual ao Om de Krishna.
O mais deserdado sopro, o mais sem arte.
Não há lugar para ele entre violas
e sanfonas e tambores  das folias
e dos bailes que embalam alegrias
entre um dia vinte e cinco e um dia seis.
Ele sonha ser apenas um mugido,
um como o vento que de um chifre sai,
pois é ao gado que viaja que ele fala.
Não o ouves? E pensas que é o vento.
tu que vens de longe e aqui te esqueces.
Escuta, como em missa, como em prece.
Pastor de bois, o boiadeiro quando sopra
O berrante que o gado ouve e sente,
é um pouco como deus, senhor do vento.


Portinari: Balão no Céu


Algumas vezes – e elas são muitas – rabisco os meus poemas em folhas de fim de agendas e de cadernos, ou nas partes em branco dos livros de poesias que me acompanham entre viagens. E alguns ficam perdidos por alguns dias... ou por muitos anos.
Assim, neste final de 2007 encontrei três deles que quero partilhar com vocês. Os dois primeiros estavam rabiscados em uma caderneta, em meio a anotações de escritos a respeito da organização de grupos domésticos nas aldeias da Galícia. Notas para um livro inacabável chamado A Crônica de Oms, que um dia espero concluir. Como gosto de indicar local, data e situação de meus rabiscos, debaixo do primeiro está escrito: “Vôo Sampa/Madrid, saindo do Brasil” (sem data). E no segundo anotei: “sobre o Atlântico” (onde?). O último foi rabiscado na parte em branco das páginas 110 e 111, do livro, Poesias, onde Salvatore Quasimodo (um poeta que eu leio e releio sem cessar) escreveu o poema: Que desejas, pastor do ar?

Carlos Rodrigues Brandão
Um dia depois do Natal em 2007

TRÊS LINHAS



TRÊS LINHAS
haikais traduzidos e recriados

Estes pequenos poemas, breves como um suspiro longo, pois estes poemas para serem vistos (ao escritos em belos ideogramas), lidos e ouvidos, segundo os seus tradutores, “não devem ser mais longos do que uma respiração”, foram traduzidos de forma muito livre de um livro em que os seus originais, em japonês, estão vertidos para o francês. Uma ou duas palavras  ao final de cada um dirão o nome de seu autor.
Muito foi escrito, entre orientais e ocidentais, a respeito do hai-kai ou haiku (como no livro em questão). Uma pequena frase no entanto pode sintetizar tudo o que se escreveu sobre ele. Seu sonho? “Colocar em palavras o silêncio”[1]. Logo, que sobre a teoria do hai-kai eu... silencie. Não sem antes lembrar que a Editora da UNICAMP publicou um precioso livros sobre hai-kais. Nele cada poema aparece em sua forma ideogramática japonesa, aparece como seria lido nesta língua, aparece traduzido de forma linear 9e aí se vê como o japonês pensa, sonha e escreve de forma diferente, e, finalmente, em uma forma afinal, brasileira, logo ocidental[2].
Vejamos como. Tomemos como exemplo o haikai de Issa, que no livro está na página 75.
Não transcrevo aqui os ideogramas japoneses. Mas o haikai, dito em Japonês com letras ocidentais soaria assim:

nodokasa ya
kakima wo nozobu
yama so nô

Na lógica e na sensibilidade japonesas, traduzido para o Português ele deveria soar desta maneira:

tranqüilidade
fresta da cerca espia
monge (do templo) da montanha

E o mesmo haikai, retraduzido agora para um Português “nosso” tomou esta forma.

Calma de primavera –
O monge da montanha
Espia através da cerca.

Logo se verá que os haiku ou haikais desta coletânea  são uma retradução de tradução. No entanto, entre o que vivemos, vemos, ouvimos e lemos, o que não é assim?
Minhas iniciais - crb – aparecerão logo ao final de alguns pequenos poemas. 
Alguns poemas-de-três-linhas, outros de mais uma ou duas e com uma rima entre duas palavras. São momentos em que, inspirado pelo seu original-francês, aventurei talvez indevidamente uma recriação livre minha. São, portanto, outra coisa que não um hai-kai (eu não ousaria tanto!). Um poemeto leve e solto, de repente, inspirado em um hai-kai original traduzido para uma outra linha e reinventado – ou transgredido -em uma outra ainda. O que seria um plágio, não fosse esta confissão antecipada. Reconheço que estes pequenos poemas – muito caros e alguns geniais em Millor Fernandes – serão o próprio contraponto do haikai, ou hai-kai, ou haiku.  Quis escreve-los, no entanto, na medida em que me saiam de forma espontânea. E os escrevi como um ocidental de agora. Ou quase.

O livro é este:  HAIKU – anthologie du poème court japonais[3]. Escolhi dentre todos os que me pareceram mais com o meu próprio rosto. Ou aqueles que me sugeriram ora uma imagem de outros momentos de minha vida, ora um trabalho precioso com a palavra... e o silêncio.
De acordo com os tradutores, “uma única palavra, uta, designa em japonês  a poesia e o canto. E é em voz alta, como um canto, que o haiku se lê”[4].
Cantemos juntos, pois.

Campinas e Rosa dos Ventos
Últimos dias de 2010/primeiros de 2011


Esta coletânea é para a Tomiko.

 


Esta primavera em minha cabana.
Absolutamente nada
tudo, absolutamente!

Yamagushi Sodô




A solidão
o frio da primavera
e nada mais

Uemura Sengyo




Na solidão
a primavera, o frio.
Parada, minha alma corre
Como um rio.

crb




a areia do riacho
a cada traço de passo
a primavera se dilata

Masaoka Shiky


 



É primavera, eu acho.
pois a cada traço
de um passo
floresce o riacho!

crb





Ao longo do rio
Não vi uma ponte.
Este dia é sem fim.

Masaoka Shiky








Todo o rio
tem três margens.
Viajei entre elas
vida e meia que vivi
e em nenhuma delas vi
uma ponte qualquer
por onde atravessar
para ir... ou vir.

crb  (com a ajuda de jgr)











É doce a primavera -
no confim das coisas
a cor do céu

Iida Dakotsu





Artista
a primavera chega
com paleta e pincel
e sobre o branco
da paisagem muda
colore a cor da neve
com a cor azul do céu.

crb


 



Vela da lua –
uma mariposa
faz da água, o céu

Yose Buson






A idade da lua?
Eu diria treze anos –
Mais ou menos
Kobayashi Issa


Na bruma da primavera
O vôo branco
De um inseto sem nome.

Yosa Buson





No morrer da primavera
o vôo sem pressa e rumo
de um pássaro sem cor.
O seu nome... qual era?

crb



Doçura de brisa -
entre o verde de mil montes
um templo perdido.

Masaoka Shiki





Sobre o ombro
do grande Buda
a neve derreteu

Masaoka Shiki






Pousada de noite
sobre o ombro de Buda
que de noite dormiu
uma gota de neve
sonhou que era um Buda,
derreteu... e sumiu.

crb





Sem um rumor
ela contempla a montanha,
a mariposa.

Kobayashi Issa





Um dia sem uma palavra
eu fui a sombra
de uma borboleta.

Hosaki Hosai






Dançam as borboletas
eu converso
com os mortos

Yokoyama Hakko






Tornou-se
o mundo
um cerejal em flor

Ryokan







À sombra das flores de cerejeiras
não existem
estrangeiros

Kobaiashi Issa





Verão, agosto.
O mais claro
clarão da lua
no lado escuro
de meu rosto

crb





De boca aberta
a menina vê caírem flores –
ela é um Buda.

Otami Kubuku






Porque é preciso
deixemo-nos morrer
á sombra das flores

Kobayashi Issa







Quando for hora
e te fores,
lembra-te que é melhor
se sob as flores.

crb







Festa de primavera
do fundo da água
as ervas me chamam

Niji





Sobre a montanha
a lua também clareia
o ladrão de flores.

Kabayashi Issa





Coberta de borboletas
a árvore morta
é toda flores!

Kobayashi Issa







Um único ruído
ao clarão do luar –
a queda das camélias brancas

Takakuwa Rankô







Eles contemplam
o oceano de junho –
os budas no fundo do templo

Masaoka Shiki





Esta montanha ao longe
lá onde o calor do dia
já foi embora

Ueshima Onitsura








Ilhas
pinheiros sobre ilhas
e o frescor do fluir do vento

Masaoka Shiki






A lua à meia-noite
como
um bloco de frescor

Yasuhara Teishitsu







O grande Buda –
seu frescor
inumano

Masaoka Shiki






Nada do que há é meu
 a não ser a paz do coração
e o frescor do ar de agora

Kobayashi Issa



Noite de verão –
o rumor de meus tamancos
faz vibrar o silêncio

Kawahigashi Hekigotô





O vento morre –
o capim
se veste de luto

Aioigaki Kajin








Nu
sobre um cavalo nu
através do aguaceiro!

Kobayashi Issa







Diante do relâmpago
sublime é aquele
que dele nada sabe!

Matsuo Bashô



Solidão –
após os fogos de artifício
uma estrela cadente

Masaoka  Shiki







Profundo
e mais a fundo ainda
nas montanhas azuis

Taneka Santôka







O mendigo –
ele veste o céu e a terra
como roupa de verão

Takarai kikaku








Ah cuco!
aumentas ainda
a minha solidão!

Matsuo Bashô



Com esta boca
que esmagou uma pulga
eu canto o Buda

Kobayashi Issa







A quem o persegue
o vagalume
oferece a sua luz!

Ôtomo Oemaru






O mundo vai indo bem –
uma outra mosca
pousa sobre o arroz

Kobayashi Issa








A água vira um cristal
os vagalumes se apagam –
nada existe

Chiyo-ni





As cigarras vão morrer –
mas o grito que elas cantam
disso nada diz

Matsuo Bashô






Sonha
o velho pinheiro –
ele não é um Buda ainda!

Kobayashi Issa







Céu de uma noite sem fim –
estrelas róseas e companheiros
esperam pela manhã

Furusawa Taiho







O paraíso?
Uma mulher
um lótus rubro

Masaoka Shiki




Aí vem o outono –
o  cãozinho que não sabe
é um Buda

Kobayashi Issa






Para quem parte
para quem  fica –
um par de outonos

Yosa Buson








A noite é sem-fim –
eu penso
em quem virá em dez mil anos

Masaoka Shiki









Aos amantes da lua
talvez as nuvens
ofereçam uma pausa

Matsuo Bashô


Sob a luz da lua
eu deixo a minha barca
para entrar no céu

Kôda Rohan








Coração
clareado pela chuva
carcaça batida pelos ventos!

Matsuo Bashô








A borrasca cessou –
um camundongo
atravessa a correnteza

Yosa Buson




A rosa branca
jamais esquece
o seu desejo de estar só

Matsuo Bashô




Outono na montanha –
quantas estrelas
quantos ancestrais tão longe

Nozawa Setsuko








Gafanhoto -
não esmague
a pérola da rosa branca!

Kobayashi Issa







Eu colho cogumelos –
minha voz
vira o vento!

Masaoka Shiki







Na noite de dezembro
um leito gelado –
eis tudo o que eu tenho

Ozaki Hôsai


Outro ano chega ao fim –
sempre o mesmo chapéu
as mesmas sandálias de palha

Matsuo Bashô







Primeiro chuvisco –
eu tenho este nome
“o viajeiro”

Matsuo Bashô









Noite após noite
a minha sopa de legume
acompanha a neve

Kobayashi Issa






simplesmente
sob a neve que cai

Kobayashi Issa



Neve que tombas sobre nós dois –
tu és a mesma
este ano?

Matsuo Bashô





Aqui está
a minha última morada –
cinco pés de neve!

Kobayashi Issa







Sozinho de só no inverno
eu gostaria de fazer uma pergunta
ao Buda

Masaoka Shiki






Neste jardim
Um século
De folhas mortas!

Matsuo Bashô






Aqui neste jardim
secaram  séculos
de folhas mortas.
Mas, se elas estão aqui...
estarão mortas?

crb




Sem saber nem por que
eu amo este mundo
até onde viemos pra morrer

Natsume Sôseki







Pouco a pouco meus pulmões
Se tingem de azul –
viagem pelo mar

Shinohara Hôsaku








O arroz está saboroso –
e o céu azul
tão azul

Taneka Santôka



E aqui nesta página termina a pequena coletânea de haikais traduzidos livremente do francês e recriados por mim, ao lado de alguns pequenos poemas meus sugeridos por alguns haikais.


Carlos Rodrigues Brandão
na
Rosa dos Ventos
no dia
13 de janeiro de 2011
dia em que
Maria Alice e eu
completamos
quarenta e cinco anos
de casamento.
chove muito, como naquele dia...
em 1966






[1] Na página 11 do livro apresentado no texto e na nota a seguir.
[2] O livro tem este nome: Haikai,  for pensado, organizado e teve os seus poemas traduzidos por Paulo Franchetti, Elza Takeo Doi e Luis Dantas.  Tenho a segunda edição, de 1991. A Editora é a da UNICAMP em Campinas.
[3] Apresentação, seleção e tradução de Corinne Atlan e Zéno Bianu. NRF – Gallimard – poesie, Paris, 2002.
[4] O mesmo livro, na página 21.