sexta-feira, 7 de outubro de 2011

FOLHAS AO VENTO - sexta viagem


FOLHAS  AO  VENTO
sexta viagem


Esta sexta viagem das FOLHAS AO VENTO vem com poemas sobre os ofícios de mulheres e homens feitos com mente e mão.
O título que dei a esta série (que originalmente seria um livro) não é meu. É nome de algum livro ou filme, não sei:  O ARTESÃO DO OITAVO DIA.
Quase todos os poemas – alguns longos demais – foram originalmente escritos em um velho e querido livro: DIÁRIO DE CAMPO – a antropologia como alegoria.
Aquele livro continha poemas, longos poemas, vários deles, aqui e ali escritos de passagem e a mão em folhas de meus cadernos de campo (o companheiro do antropólogo) ou de meus cadernos de viagem (o companheiro do errante).
Vários deles foram depois retrabalhados e, junto com outros, bem mais recentes, foram publicados em um novo livro: O VENTO DE AGOSTO NO PÉ DE IPÊ – escritos sobre cerrado e sertão.
Logo se verá que, de fato, a maior parte dos poemas deste vôo de velas ao vento falam dos mundos entre o cerrado goiano e o sertão nortemineiro.





O ARTESÃO DO OITAVO DIA
poemas sobre trabalhos com as mãos
recolhidos de livros e escritos anteriores


Há trinta e nove categorias de trabalhos importantes: plantar, arar, ceifar, enfeixar, debulhar, joeirar, podar, moer, peneirar, amassar, assar, tosquiar, lavar, bater ou tingir, tecer, trançar, dar duas laçadas, preguear ou trançar, separar dois pontos, dar um nó, desfazer um nó, costurar dois pontos, rasgar de maneira a dar dois pontos, caçar uma corça ou outro animal, tirar sua pele, arranhá-la ou cortá-la, escrever duas cartas, apagar para depois escrever duas cartas, construir, demolir, apagar um fogo, acender um fogo, atingir com um machado e tirar qualquer coisa de um domínio para outro. Estas são as principais categorias de trabalho, trinta e nove ao todo”.

SHABAT 7:2 - Mishná – essência do judaísmo talmúdico. Ed. Documentário, Rio 73, páginas 62 e 63.













O Ofício de Plantar
Santa Luzia - Minas

Todos os outros ofícios dos milênios
misturam a matéria da terra com partes mortas de seus frutos
e disso fabricam o testamento dos bens do homem:
o tijolo de barro, a roda de aço, a mesa de madeira.
Só o teu ofício mistura à terra a própria terra
e atira nela o grão vivo que morre e renasce
em multiplicações do próprio fruto.
Por isso os ofícios dos outros são artes de ciência,
alquimias aprendidas nos porões dos magos do norte
que transformam nos fornos e bigornas dos senhores da terra
os metais do mundo. Mas o teu é o único exercício humano
que recria da vida a própria vida molhada de janeiro.
E os senhores sabem que fazer a vida brotar do silêncio
do orvalho e do trabalho é terrível,
porque a vida persegue os poderes e as armas
e ameaça o passo dos guerreiros errantes.
Por isso fazes artes de profeta e és um sábio anunciador.
Por isso os grandes te vigiam de perto e te fazem servo
e te tomam por maldito, condenado a viver fora do castelo.
Por isso contra ti lançam exércitos e juízes de toga.
Por isso te temem pelas gerações e fazem de ti,
sagrado como um caminho de terra molhado entre duas pontes,
um exilado sempre expulso da terra que trabalhas.

24 de janeiro de 1982










O Semeador
Santa Luzia, em Goiás

A noite não demora na morada do escuro,
ela anseia o claro alvorar da manhã.
Estava o semeador de auroras
sulcando a aragem da terra
com riscos de um fio invisível
que somente tecem e sabem tecer
as mãos hábeis dos rituais do amanhecer.
E alvorada de ele trabalhar, curvado sobre a terra,
a suave equação que de grão em grão movia
a complicada arquitetura do universo.
Ali, como se a história das coisas e homens
a cada dia nascesse de novo desse gesto ancestral,
pois todas as coisas são o que o homem planta
e cultura é o nome dado ao que ele colhe e canta
enquanto corta a braçada de cereais.
Estava o semeador de auroras
dizendo um a um os seus nomes
aos frutos que iam nascer.
E como quem dá o nome dá a vida,
pronunciava sussurros de um rito sagrado,
como um mago vestido do branco alvo da neblina.
Não como um lavrador de três alqueires.

28 de junho de 1978









Lavradores volantes
Itapira

a  ida

ser volante, voar em banco estreito
como um bando sobre ave-caminhão
por caminhos da pressa rotineira
aos roçados da cana e do cansar
sob acessos do corpo e do facão
na esteira da estrada, entre tocos.
Entre o que a noite deixou amanhecer
caminhando entre roças derrubadas,
entre assombros do sono e do alvar.

a volta

o lavrar dessa gente. O seu labor,
os seus serviços do campo à força bruta
da procissão que retorna todo dia,
seis vezes por semana todo ano,
após refazer tão coletivo
o solitário exercício lavrador.
Suja de visgo, suor e borra seca
dos mil cortes da cana esfaqueada,
O que sobra de humano nessa gente
além da própria pessoa devastada?

12 de abril de 1982











festas de colheita
Caldas


Rasguei o calendário. Não sou homem que conte os dias
do campo correndo com a ponta dos dedos a fila dos números.
Olho as estrelas. A variação da luz do cosmos
e a posição de alguns astros na nave do céu
me diz a era dos meses. Meu tempo são as estações,
sou homem de lavrar.
Duas vezes por ano chego à janela e digo aos da aldeia:
celebrai aos ventos as vinhas de outubro”!
preparai o corte dos instrumentos de ceifar!
celebrei, digo, as chuvas do verão e os frios do inverno!
A cada tempo a sua festa, mesmo quando há fome.
Há um tempo de vesti-las de lã e aconchegá-las
junto ao fogo. Do mesmo modo, digo aos da aldeia,
com os mesmos gestos rituais não se pode celebrar
o tempo em que sobre a pele do solo se ara o chão
e aquele em que a ceifadeira corta o caule do trigo.
Não há mês como abril, digo aos que colhem.
As colheitas passaram e passou o tempo da quaresma.
Celebrai, grito da janela, os cereais de março!
Olhai os campos de pastagem! Vede os capins!
Antes de serem todos os anos, desde o começo dos tempos,
ao sol de maio e aos frios de julho secos e queimados
o que há de mais belo do que a sua floração?
Que roseiras sacodem no jardim dos ricos flores mais finas?
Celebrai, digo aos que colhem, as sementes que jogam ao chão!

14 de junho de 1979











situações de plantar e colher
São José de Mossâmedes

1.
o jeito goiano de plantar com a mão
o que o mato dá sem mágoa
e o cerrado sem cobrar:
pequi, caju, mangaba, madeira, mel de abelha
dados de graça, catados com a mão cheia
dos repentes de amor da natureza
que não cabem no arrendo nem na meia
e não põem placa de “vende” na parede.


2.

a lei paulista de plantar com o arado
o que a roça dá com avareza
e o dono cobra à vista:
milho, feijão, arroz, soja e aguardente
“dados” em fero trato feito à meia
sob o dedo do poder do fazendeiro
que existe às custas do trabalho alheio
em casa grande de fazenda e tulha cheia.

5 de janeiro de 1982





















povoados camponeses
Abadia de Goiás

Este não é um lugar de reis:
Não são nomeados, não existem.
Se algum houvesse, quem entre
esses homens rudes acostumados
a reis de Natal e reis de Negros
curvaria ante a sua coroa
a sua fronte?

16 de fevereiro de 1982
























nomes, mortes
Cidade de Goiás

Muitas mortes há.
E o doce manto da noite estendido sobre os fogos od dia
não as oculta. A algumas podemos resistir com o ofício
ancestral de nossas armas naturais: arados, foices e violas.
São os nomes das mortes da fome que quando somos livres
não resistem seis dias ao poder do trabalho e da terra.
Essas mortes queimamos aos sábados em fornos de barro
de onde as mulheres retiram tabuleiros de pão.
Muitas mortes há.
E mesmo a brisa na madrugada vinda, a que dobra o tênue
tecido da noite não a espalha. Para outras são exigidos
os usos de terços e rosários que as velhas da aldeia
desfiam entre os dedos. Preces que fazem a seres que não vemos,
mas que estão lá, porque as velhas que sabem dizem que estão.
Outras não enfrentam o poder dos magos que temos,
homens que dançam e a quem obedecem as estrelas.
Os que salvam dos terrores do oculto as tribos de que somos.
Muitas mortes há.
E até mesmo o sol que desvela a poderes de fogo
os nomes de inverno dos seres do mundo não as decifra.
Porque há mortes sem nome conhecido.
Mortes com o nome oculto dos segredos que os sábios
que temos nos contaram. Por isso essas mortes nos matam
e pelos cantos da aldeia catam nossos filhos.
São mortes que chegam de fora e aterrados perguntamos:
como vencer os poderes do que não sabemos nomear?

13 de fevereiro de 1979










a consciência de classe
Cidade de Goiás

Enquanto lavrava a golpes
de machado o poste de aroeira
o preto lenhador chamado Berto,
nascido no Faina, perto de Cavalo Queimado,
apontava com o dedo o dono
ao longe da serraria e dizia assim:
“camisa dele quem dá é o meu trabalho”.
Se diz que o machado do preto
era mais afiado e certeiro do lugar.
E a fala também.

3 de junho de 1979
























o canto do trabalho
São José de Mossâmedes

Antes do mutirão na antiga aldeia
de São José de Mossâmedes
os homens da terra chegaram com a madrugada
cantando com violas e violões o canto da “traição”
na porta da casa do lavrador, vizinho e compadre.
Depois da manhã, durante todo o tempo do trabalho coletivo
de limpa do campo atrasado para o plantio do grão de arroz
havia gritos de avisos e troças de uns para os outros.
E havia longos momentos cheios da luz dos cantares do eito,
quando parece que a voz de todos aumenta o poder do braço
sobre a enxada e a terra vermelha do cerrado
inventa ser mais macia quando os homens lavram
cantando no seu corpo.
No fim da tarde, quando o trabalho da limpa acabara
e o campo ficou pronto para o sono da semente,
os homens do adjutório voltaram de novo para “casa do dono”
com as cabaças de água vazias e os instrumentos da roça nos ombros.

Voltavam juntos cantando canções do trabalho,
músicas de uma memória antiga, que se canta só naquela hora.
Num gesto cheio de flores do campo e rituais
os homens do trabalho devolveram o “dono do serviço”
à “dona da casa” e beberam nos mesmos copos pinga de alambique.
Depois da janta de arroz-com-pequi e carne de leitoa
formaram na sala do rancho as duas filas da catira
e cantaram e dançaram noite adentro
batendo palmas e sapateando a alegria da hora.
Quem passasse apressado na estrada poderia dizer:
“só o povo canta assim o seu trabalho; só o povo canta durante
o trabalho; só o povo festeja o trabalho coletivo e canta
depois dele”.
Porque ele não perde ainda a força ancestral
de conviver com os fluidos da terra,
e só ele faz e refaz o rito sagrado de arrancar dela,
mais do que os frutos da terra, a doce fruta do trabalho solidário.
E somente os ritos naturais do homem
merecem cantos coletivos de louvor e de esperança:
antes, durante e depois.

23 de maio de 1977



o semeador meeiro
São Félix do Araguaia

os cristais polidos
dos grãos de arroz
escondem a história
das trocas do semear
e as leis do esforço
de quem semeou.

Inventa mentiras
à mesa do jantar
essa massa branca
e branda na boca
sobre o ardor do duro
fazer fundo o sulco
e plantar como servo
pelo chão o resto
do pouco que sobrou.

Diamante múltiplo,
muitas vezes único,
furta o arroz no saco
do papel de celofane
a memória da safra
feita em “trato à meia”.

Jóia fina á venda em feira,
objeto raro de relojoeiro,
o grão polido e lapidado
do colar das contas do arroz
nada conta do que seja
plantá-lo em terra alheia.

15 de maio de 1978




voltar do trabalho
São Luís do Paraitinga

Exilados da luz do dia - já é noite
e o vozerio das estrelas invadiu o céu do outono -
de novo juntos na margem esquerda da estrada
os camponeses de junho refazem o mapa de volta.
Ei-los. Carregam no vão macio dos ombros
o bastão da enxada que na ponta pendura a cabaça vazia
da água, pequena primavera no dia de trabalho.
Carregam o peso desse dia e por isso arquejam o corpo
mesmo quando não é mais preciso, porque o ofício de andar
descansa o dorso na curvatura a que obriga o de carpir.
Os mais ágeis livram os dedos
e com os artefatos dos primeiros caipiras
fazem pelo caminho a arquitetura difícil
de um cigarro de palha de milho.
Entre o cantochão dos sapos na beira dos brejos
e a orquestra de flautas de grilos e cigarras
esses homens não cantam e apenas abandonam aos pés
a música dos cantos de voltar.  Viajeiros do outono.

3 de março de 1982














a terra
São Luís do Paraitinga

Misteriosa senhora dos sentidos do homem,
mãe mineral do ofício e do orgasmo.
Não nomeada e no entanto presente
nos solos do quarto onde mulher e homem
fazem os arranhos do amor. 11 Ali se misturam
no lavrar da carne os sucos dos corpos
entre sinais de gritos e gemidos de alegria e poder.
Irmã da vida, sobre teu manto semeiam os homens
e dele tiram as colheitas de maio.
Ali pois deviam amar. Sobre o solo deitar o dorso
de homem e mulher. Acaso somos outra coisa
senão o sumo do fruto do teu gozo?
Ventre da vida, mãe dos seres
sobre quem o mistério tocou com o sopro do hálito,
úmido hálito denso de seiva e sangue.
Orvalhada da noite dos milênios
e mil vezes mais velha que os passos do homem,
que entre as palmas das duas mãos
ele tome a pele de teu corpo morno
e com ela toque o espelho de seu rosto
e entre todos os sete sentidos reconheça
a espessura dos grãos de areia que são
a oficina da origem de todos os domínios,
e sem o que os próprios deuses do mundo
seriam inúteis.

11 de fevereiro de 1981








algumas tarefas comuns
Araçatuba

Amassar a massa irmã da terra
no oco do pilão da mão.
Quebrar à força a trama de aço
que existe num torrão de terra dura.
No céu do chão traçar o risco
fundo que há no rio azul do sulco.
Recolher da sacola do semeador
depois, aos punhados, a semente
e espalhar pelo rastro da canção da chuva
a fé do grão que crê na semeadura.

13 de maio de 1979






jeitos da terra
Barão Geraldo - Campinas

a avareza da terra
é às avessas.
Ela se exalta de dar
tudo o que esconde.
Por isso a terra
é a casa onde
a vida multiplica
seus roçados. Suas rezas.

10 e 11 de novembro de 1981




a idade do ouro
Ouro Preto

O sol de outro dia molhado das águas de leste
ilumina a fila de passos que fizemos a meio caminho
longe, tanto que o grito da esposa à porta do rancho
não alcança o lugar onde trabalhamos a terra.
Em nome de que ser devemos portanto
repetir três vezes por dia o dever da oração?

Houve um tempo em que o arfar do peito de nossa gente,
os encontrareis semeados pelo campo com cruzes de aroeira
a um palmo do lugar da cabeça - era o primeiro sinal do amanhecer.
Vinha o iluminador de outro dia molhado das águas de leste
e os achava no eito - os velhos da raça de que somos.
Somos uma gente digna, dado que os homens e alguns deuses
- até mesmo  os dados aos prazeres e ao vinho -
anunciam que o amanho da terra é a dignidade do homem,
e os símbolos do que fazemos com a terra são tema de parábolas.

No entanto comemos em pratos de alumínio barato
e as gerações que temos amassam com os pés nus a lama
dos quintais, lugares de alquimias da vida, mais do que os
dos sábios que comem do que colhemos e em troca ofertam
pós e poções que tememos usar.
As florestas que resistiam às primeiras caravanas
nós as derrubamos com machados e grandes fogos
cuja linha de ferreiros e bigornas dias e noites clareavam
os serões de agosto a outubro.
A selva era submetida ao temor da cultura
e reduzida às cinzas que a chuva fazia serem
o adubo da germinação da terra.
Chamas da terra convertidas em verde. Os ossos da floresta
reduzidos ao pó que misturamos com a semente dos cereais
e com o trabalho transformamos em grãos infinitos.
Multiplicadas as notas de nosso padecer de povo pobre,
tornamos ritos de mortos algumas antigas canções de bodas
que tínhamos e gostávamos de ter e que por muitos anos
foram toques alegres entre palmas e passos de sapateios.
Hoje são passos descalços dos que seguem a fila do cortejo
dos mortos, adormecidos em redes brancas de panos de algodão
e antes do outono recolhidos à mansão dos dormidos.
De uma geração à outra, como a poeira do chão
que o passar do tempo torna estéril,
contamos maiores os números dos nossos males:
nós, os homens ingênuos do amanho da terra.

A primavera de uma era perdida, anterior à moeda,
e primeiro foi o tempo ancestral dos seres nus
que não plantavam nem colhiam e dos claros das matas
catavam frutas doces, mel e raízes boas para comer e curara.
E bebiam águas cristalinas de verdes rios sem donos.
Aquele foi o tempo de possuir os dons da vida
e conviver com vigílias de deuses,
forças do universo cheias de nomes e sinais
a quem a cada manhã os homens criavam outros nomes
e que a cada estação renasciam transformados em flores e grãos.
A pulsação da terra os nossos ancestrais sentiam
pondo o oco da mão direita sobre o coração.
A variação dos tempos: secas e chuvas, verões e primaveras,
eles adivinhavam acariciando o veludo da própria pela,
ou olhando o sinal do cosmos, seja entre as estrelas da noite,
seja dentro do brilho do céu dos olhos de alguém amado.
As estações do ano existiam na alma do homem
e os seus corpos vibravam em comum comoção com a tempestade
ou as noites em que a brisa mal move uma folha.
Colocar no corpo das mulheres fluídos brancos de vida
era tão diário quanto encher de água limpa
a concha das mãos e beber. E era tão sagrado.
Foi um tempo anterior ao arado
e os ritos dos moços celebravam formas de vida
que corriam livres entre as veias da tribo dos homens que fomos
e de agora não há mais do que sinais em grutas e montes:
sinais de uma memória que de acordo com os sonhos que tem
os velhos da aldeia avisam que viram e existe
Depois foi o tempo de aprender a lavrar os campos
e primeiro a terra foi de todos, os campos sem cercas
e as roças sem nomes. Os tipos de gados que tivemos
corriam livres entre terras em busca de aguadas.
Longe alguém bradava uma palavra de mesma crença comum,
e de casa em casa  ela ia, viajaria do vento.
Os homens eram iguais e tinham as suas mãos os mesmos sulcos,
entre si casavam filhos e filhas
e sabiam todos os passos das mesmas danças.
Os senhores existiam longe, em terras cujos mapas
sequer sabíamos pronunciar. Eram raros os comércios com os maus
e por isso se podia pensar que a Terra era plana
e parada no ar. E por isso por toda a parte se cria que os mortos
voltariam um dia ao mundo e seriam como eram.
Essa foi uma era perdida, primeiro dos dias,
depois, da  memória dos homens. Sobraram alguns mitos e ritos
que às vezes contamos e festejamos em noites de junho.

18 de janeiro de 1980













o  ofício de  fiar
Goiânia

um

O tecido que velhas mulheres fazem, fiandeiras de um saber
arcaico cuja origem ninguém pergunta. A urdidura que torna
em pano a polpa branca enovelada do algodão. A roca que as
mulheres do sertão pronunciam “roda” e se faz rodar sem descanso
desde a madrugada sob o compasso binário do pé da anciã.



dois

não há arabesco mais ágil que o do desenho dos movimentos das
pontas dos dedos da mulher fiandeira, e que outro ser de todos
os continentes torna mais útil dos jogos da manhã do que a
fiandeira tecelã? Aqui é onde o ruído da roda a rodar
enovela os fios vegetais da fibra que alguma manhã de maio
colheu há um ano. Falo da arte e do amor.

três

penso na estima que se devem ter esses corpos frágeis de louça
viva, mulheres a quem alguma doença do sertão sempre torna
débil e que se tocam com carícias de comadres sem apertos e
beijos no rosto, quando antes do trabalho se encontram e se abraçam quase com medo do que fazem. Sinais de carinhos vestidos de silêncios, falo da estima. Falo de uma qualidade de amor que entre si têm as pessoas da terra e certas espécies vegetais
com que convivem por milênios de gerações.





quatro

que bailado é mais rude entre as danças de roça do que esse baile diurno: solo que a fiandeira faz com o só compasso dos tambores do tear e as flautas finas das lançadeiras do fio de algodão? Dança que ela própria toca no órgão de que é maestro
e prisioneira de pé, sobre os dois paus das pisadeiras
move a tecelã o corpo com a precisão de uma tropa de soldados
enquanto os braços jogam de um lado para o outro, no mesmo compasso
binário que rege todo o ofício, a embarcação da lançadeira.
Barco que faz viajar sob o tecido em que a trama na dança faz o fio de
linha fina de algodão. Falo de ritos do trabalho nos sertões de Goiás.

26 de janeiro de 1981














três instrumentos de lavrar
Goiânia

a. o machado

nada há mais certeiro
do que o golpe
desse parceiro da morte.

b. o arado

de tanto escavar os veios da terra
e polir entre os seus ossos minerais
o seu aço, brilha sob o sol de março
a sua lâmina - vela de sulcar.
É seu o ofício de navegante de um mar
onde o barco faz o rumo e a onda,
marola que lhe afia o fio da proa
apontada sempre para o lado do campo
onde o porto da noite vai chegar.


c. a ceifadeira

a luz da estrela mais próxima
brilha no fio dessa arma cortadeira.
Na mão ágil do ceifador de arroz
a lâmina recurva corta e recorta
e no curvo do aço que lhe dá o ofício
arranca aos punhados, quando vai e volta,
o buquê dourado da flor do grão do arroz.

2 de março de 1981






figuras na sombra do dia
Itapira

Com o corpo por igual curvado
forçam o fio da enxada e escavam o chão.
Com a curvatura que dá ao corpo enfim
a figura de um arco tenso, 18
instrumento de carne e nervos adestrado ao trabalho
fazem cantar a música da matraca.
Ela atira punhados de grãos de milho
a distãncias regulares no sulco,
trilha que uma noite antes
o arado puxado por dois burros
riscou na folha do mapa da lavoura:
desenho que o lavrador faz de memória
de tanto traçar e apagar a mesma tela.
Com as duas mãos polidas de tanto fazer
o ofício de lavrar, cheias dos sulcos
o arados na carne pelo dardo do cabo
do arsenal de instrumentos de plantar
o lavrador prepara outro ano do sono da terra.
Embora haja ali sinais de um coito
nada há que na boca da noite
sinalize qualquer espanto de prazer.














O bendito de mesa
São José de Môssamedes


Pegar esse canto pelo braço. Erguer
essa reza pelo ponto do corpo mais difícil,
a parte mais acesa do rezar.
Envolver o Bendito na armação pura da voz.
Enovelar o fio das sete notas, seus bemóis,
com o aço do laço puro da fala e seus anzóis. 8
Cantá-lo só e desenvolto sem violas
a oito lavradores do sertão.
A oito vozes diversas de goianos,
pássaros de um grave acento antigo.
Rezadores de Reis que com a mão
desfiam da mesa em volta à volta longe
de serras, campos e povoados,
o sagrado que se canta na oração.
Cantar o canto a plena pura voz,
a toda inteira vontade de cantar. 9
Como se acaso a voz, o canto e a prece
tomassem conta de mais de meia vida
dessa gente vida afora usada e havida
no silêncio dos ofícios do lavrar.

9 de julho de 1976














alguns fogos, algumas roças
São José de Mossâmedes

Quando amonta na mula amansada do vento
e viaja serra acima, do sopé à cumeeira
o fio da coivara é uma linha fina
de um tecido de algodão laranja
que a brisa mansa do sudeste tece
e a palha seca do cerrado empina.

Um fino fio carmim de fogo ralo
noite após noite costurando a colcha
de um arvoredo seco e ressecado
que cobre encostas de serra e pedra
por onde a custo sobe o fogo do alfaiate.

O oposto dele é o fogo de armadilhas
que apronta o guerrilheiro seu irmão
quando desce a serra entre matas e grotas
e contra a espada dos capins do pasto
aponta e atira facas de aço em brasa.

Cavaleiro que a onda de si mesmo
à noite monta e na manhã cavalga ao vento,
fogo-potro bravio a galope em disparada
contra o verde e o seco. Guerreiro
irado com a sua foice erguida
cortando a fogo os fios do mato vivo.

28 de dezembro de 1981








as flores aprendem com as pessoas
São José de Mossâmedes

O ouro vivo dos ipês de agosto
amanhece os matos de Mossâmedes
No trilho dos remansos da manhã
a água fria do cristal dos córregos
desceu a serra e fez descer em fila
as flores que bordam os pequizeiros.
Outros ipês do mato mais adiante
pintam de roxo o piso do arvoredo. 4

Sob os troncos cerzidos no cerrado
há tapetes estendidos com as seis cores
que a natureza aprendeu a entretecer
espiando das janelas os teares
das casas das mulheres-fiadeiras.
Quintais onde se fia tinge e tece
o tecido sem-fio dos fios alados
que a cultura dos “sem-letra”
escreve e assina.

Nessas roças de fazendas entre matos
a natureza fia o que cultura tece
e a memória das duas não esquece.
De modo que entre campos e povoados
há coberturas de copas e de colchas:
flores de panos que as pessoas fazem
e as plantas da floresta v~eem e imitam,
sob um claro de coivaras pelas serras
entre o sol do dia e o luar de agosto 5

29 de dezembro de 1982




viver do ouro, viver de sobras
Cidade de Goiás

Faz um rosário de anos e mais anos
desde quando o ouro das areias que escorriam
entre as águas quentes desses riachos acabou.
Como a mesma areia entre os dedos do menino
findou de uma vez o ouro-em-pó que por um século
trouxe a riqueza e casos de desgraça
a casas de adobe que ficaram velhas
na face oeste da Serra Dourada.
Perdidos pelos sem-volta dos caminhos
que um dia trouxeram da costa
querosene, sal e escravos,
os ricos e pobres do lugar fugiram da vida
ou migraram com tropas de mulas e tralhas
para povoados do norte. Lugares mornos
onde rios mansos de águas lamacentas
ao contrário desses arroios cristalinos
tem um sujo bom de lama que a cada ano renova
o chão onde o arroz cacheia o ouro do grão.
Migraram para ermos cantos escondidos
onde se diz que “boi vira brabeza”:
grotas e vãos, buracos dos baixios de serra.
Com as sobras do ouro que possuíram
os coronéis do lugar compraram alqueires
de onde hoje os filhos e netos expulsam
os filhos dos filhos dos peões meeiros,
a descendência do camponês do passado
a que os mitos dos pais dos avós
disseram que depois do fim do tempo do ouro
reinou por ali por muitos anos, a idade do ouro.
Um tempo inesquecido nas sagras dos velhos
quando todos plantavam por direitos de posse e uso
e mesmo os pobres do mundo lavravam sem tributos
as terras dos outros e de todos.





Um tempo antigo que a lembrança da roça
não quer esquecer, quando por anos e anos
sempre setembro esparramava aos ventos
por todos os cantos, por todas as casas,
o cheiro solidário de um fogo interminável
de queimadas entre alqueires de campos sem cercas.

29 de dezembro de 1981



vôos a oeste
(entre São Paulo e Goiânia)

No tempo em que as coisas eram feitas para o homem
os aviões voavam baixo e do alto se via a olho nu
a repartição do reino dos seres do mundo:
as matas que por milhões de eras cercaram o homem
e eram agora cercadas por eles e a lenta
demarcação dos seus territórios de conquista.

Aquele foi um tempo em que o homem e a terra
estavam sempre em luta e se amavam muito.
Muitos anos mais tarde quando os vôos a oeste
voavam roçando o topo dos morros
era possível vislumbrar do alto
os estragos do amor e os afagos da guerra
que entre um e a outra sempre houve.

Pelo vão das nuvens, em vôo de vizinhos
se via então sobre aqueles terrenos de batalhas
frutos de amor secando ao sol.



Revisto e re-trabalhado em Paris, em setembro de 2006.
Revisto de novo e incorporado à série VELAS AO VENTO em 31 de dezembro de 2009, em Picinguaba, Litoral Norte de São Paulo

Carlos Rodrigues Brandão




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